Quarta-feira, 13 de Fevereiro de 2008

Gato escaldado, de Campia tem medo

  

            As baratas são frequentemente citadas quando se pretende salientar a capacidade de resistência da vida animal à intervenção destrutiva do homem sobre a natureza. Estes pequenos insectos, da ordem Blattodea, frequentemente apelidados como repugnantes, existem na Terra há mais de 400 milhões de anos, tendo sobrevivido a séculos de perseguições implacáveis, movidas por parte de donas de casa que entram em crises de histeria ao mínimo vislumbre da sua presença. Resistiram estoicamente ao progresso assinalado na indústria do calçado, sobrevivendo à morte por esmagamento por parte das sandálias romanas, socas holandesas, chinelos de borracha e finalmente às pesadas Doc Martens. Diz-se mesmo que no caso de ocorrência de um holocausto nuclear, as baratas ficariam por cá e seriam sérias candidatas a espécie dominante do planeta. Boatos velados, e obviamente destituídos de veracidade, defendem que, mesmo o infalível DUM-DUM, pouco ou nada pode contra tão tenaz insecto.    

            As tradições assemelham-se às baratas, sem ofensa para as últimas, no que toca à resistência ao extermínio. Resistem sem mácula às investidas de um conjunto de inimigos, que contam entre as suas fileiras, factores como a literacia, a justiça, o bom senso, ou mesmo a razão. São Inúmeros os casos em que qualquer um dos últimos argumentos sucumbe por terra à típica resposta proferida, frequentemente, por uma boca desdentada e brejeira  “Aqui sempre se manteve esta tradição, já desde o tempo dos antigos ”. Há bom! Nesse caso então desculpe a minha intromissão, por favor queira continuar a espancar a sua esposa. Olhe, por acaso este pau não lhe parece mais indicado para lhe infligir um traumatismo craniano?

            Por este pequeno Portugal fora, pululam diversos casos de autênticas manifestações de degenerescência mental colectiva, que são mantidas e estimuladas por “serem tradição”. Já tinha tido o desprazer de ouvir falar dos touros de morte de Barrancos, dos miúdos fumadores de Mirandela, mas foi neste Carnaval que a minha lista pessoal de habitats naturais de mentecaptos se enriqueceu com a aldeia de Campia, no concelho de Vouzela. Em Campia não há miúdas semi-vestidas em avançado estado de hipotermia, que se abanam numa tentativa frustrada de copiar os passos de samba a que assistem pela televisão. Não há também  mascarados, desfiles ou cabeçudos. Não! Por lá mantém-se a tradição! Todos os Carnavais, os mordomos das festas formam uma milícia que palmilha as ruas em busca de um gato. Uma vez capturado ou roubado, o animal é colocado num cântaro, dentro do qual fica fechado até a hora da festa. Depois, à noite, no largo da Parvónia, digo Campia, o cântaro com o gato encerrado no interior é içado até ao cimo de um mastro, em torno do qual se dispõe uma pilha de lenha. Pega-se fogo à lenha enquanto a multidão acéfala aguarda ansiosamente que o cântaro aqueça e as cordas ardam, desfazendo-se o cântaro em mil pedaços no chão. Caso o animal (e aqui refiro-me aqui ao gato) “tenha sorte” e ainda esteja em condições de fugir, a horda  obtusa de populares move-lhe nova perseguição munida de paus  para ver quem lhe acerta.

            Alguns órgãos de comunicação social deslocaram-se este ano à Campia, a fim de falarem com a organização de tão sádica festividade. Carlos Duarte, o único defensor “da tradição” que conseguiu concluir o ensino primário, lá iniciou o seu discurso com a já esperada afirmação “A tradição sempre existiu e poderá continuar a existir porque nunca morreu nenhum gato”, garantindo, inclusive, que já terá usado gatos seus, que regressaram a casa, sem nenhuma maleita, no final da festa. Claro! Faz sentido! É exactamente a mesma justificação usada pelo já mencionado marido que espanca a mulher. “Ela é MINHA mulher e nunca morreu em consequência das tareias que apanha”. O referido pacóvio negou ainda que a população movesse uma perseguição colectiva ao gato, após este se escapar do cântaro. Apenas um homem mascarado, designado por “Burro das Turqueses” (o nome não podia ser mais apropriado) o faz. No entanto, para não alimentar polémicas, ou não tivessem sido apresentadas algumas denúncias de atentados aos direitos dos animais junto das autoridades locais, este ano iria ser usado um gato de peluche, em vez de um verdadeiro. Num acometimento espontâneo de preocupação com o bem estar animal, Carlos Duarte, questionou se não será pior para o gato fazer uma viagem de 8 horas de avião fechado numa gaiola, do que ficar uma hora dentro de uma cântaro. Eu recomendo-lhe que experimente as duas alternativas e que nos diga qual prefere: fazer uma viagem de 8 horas de avião fechado na casa de banho, ou uma hora encarcerado num pipo, que é içado 10m no ar, posto em chamas e finalmente perseguido por uma maralha com paus… Aliás, pensando bem, até mesmo as baratas parecem não resistir às chamas.

publicado por Nuno Susana às 13:21
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